terça-feira, 29 de abril de 2008

não ter tempo

Acordou sobressaltada.
Lembrou-se da pressa. Não tem tempo. Há qualquer coisa, qualquer coisa ou alguém à espera. Está atrasada, agora demasiado atrasada para correr apressada para o encontro. O tempo é outro e engana. As nuvens não dizem nada nem o dia nem a noite. Não importa, a pressa agita por dentro, revolve o sangue, desperta-lhe o calor. O sangue desata a correr em êxtase no sentido contrário ao de sempre. O sangue quer sair pelos poros, habitar, habitar o corpo, senti-lo, encharcá-lo e largá-lo depois, deixar nele o sangue coagulado, ressequido depois... O cheiro a sangue faz esquecer a pressa. O comboio apita, aproxima-se, chega. Parte. Desta vez, como as outras, para sempre.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Crer

Atracção. Do que é difícil e nem se sabe se se quer. Do que se quis em sonho e deixou de se querer pelo encurtar da distância...porquê? Do sonho ao medo, um acordar que nem precisa dos olhos abertos...vê-se de mais, encandeia. Outra coisa, outra coisa que não esmague, que não sufoque e ao mesmo tempo o aperto de tentar fugir...de escapar como uma miúda pequena ao Encontro. Querer muito e repudiar ao mesmo tempo. A ambivalência transformada em forma de vida.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Se o sorriso falasse

Se o teu sorriso falasse. Que diria? teria eu alguma resposta? O sorriso não fala porque também não quer resposta... O sorriso cala...às vezes a dor de não se saber sorrir... sorrir de verdade. Que verdade? Sorrir é bom... dizem. Gosto do teu sorriso, gosto que gostes dele, porque enquanto gostas dele distrais-te do que sou sem ele.
A perversidade.
Saber que não és nada, que tudo o que és a mais que o nada é... abaixo, fundo. Escuro. Não sabe sorrir, por isso fá-lo a toda a hora, e nunca o viu...ao seu pelo menos. Se o sorriso dela falasse dir-te-ia tudo aquilo que ela nunca aprendeu a dizer... e tem vergonha, vergonha molhada e espezinhada por uma culpa que veio de outro lado...porque ela era só um criança. Hoje culpa-se. Hoje dói-lhe.
Hoje.
Sorri.
E tu sorris-lhe de volta.

Ser de outra maneira Ou outra maneira de ser

de não chegar.
de falhar,
de ser menos
de ser demais
de não aguentar
de não suportar
de desistir
de regredir
de atrasar
de não querer
de não querer querer mais
de não saber
de não sentir
de encontrar
de atingir
de nunca ver
de sentir para sempre
de nunca mais sentir
Medo.

sábado, 19 de abril de 2008

Aconteceu

Ela pensou que não queria, depois pensou que não querer era querer de outra maneira. Envelheceu e continua a não querer mas cai, recai no erro da sua recusa.
O impulso inexistente do erro corta-lhe o resto do impulso de vida que ainda tinha.
Esqueceu-se de não querer e volta à morada proibida sem muito esforço e poucos euros. Continua com medo e quer fugir. Mas já entrou e fechou demasiado bem a porta para poder sair a correr. Agora não há nada que ela possa fazer. A inevitabilidade sempre lhe facilitou a vida...Ama-a como nunca conseguiu amar alguém. Sabe disso e esse saber implica um sofrimento com nome igual ao seu, com letras mais carregadas, cravadas no avesso da pele. Passou a barreira do medo, está para lá dele e não consegue dizer a ninguém como é esse mundo. Não consegue, simplesmente, não encontra palavras neste mundo para descrever o outro, onde agora vive durante quase todo o tempo. A inevitabilidade sempre lhe facilitou a vida.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Creme

Foi só o que ela quis dizer.
Não foi preciso mais para se desfazer inteira no que as nuvens nesse dia não quiseram dizer.
Respira fundo, bem fundo...
Expira o medo quase todo até se conseguir levantar. Dói-lhe ainda a dor maior, já sobejamente intrínseca...suportável na memória de não se saber de outro modo. Nunca.
Volta a acordar no mesmo corpo e na mesma mágoa...Não sabe se aguenta. Isso também já não importa. Não aguenta mais...e mais é tudo aquilo que o andar pesado comporta a cada dia que se soma no calendário. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. A mais. O corpo a mais que prende e obriga...Querer ser sem ele e por não poder querer deixar inteira de aparecer, a cores pelo menos.
Viver o limbo, a ambiguidade do desejo: querer romper a pele e no dia seguinte hidratá-la cuidadosamente, no minuto seguinte ao banho.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Gémeos

Acordo meio atordoada entre o riso nervoso e o medo da ilusão verdadeira na concretização do sono do indesejado sonho.
Não, não quero.
Estava de corpo igual, barriga pesada, insuportavelmente grande que nunca niguém conseguiu ver para além de mim. Passaram nove meses e só nos últimos eu tive a certeza. Guardei o segredo como quem se guarda a si própria, sabendo que de nada valia mas sem que isso tivesse qualquer influência no meu silêncio.
Fui a uma loja, com muitos senhores de bata branca e barbas compridas, óculos, altos...todos sentados de postura correcta como quem espera na loja do cidadão e a sua vez dependesse do atento e mais direito olhar. Não quis trocar qualquer sentido com eles. Queria fugir da barrig e enfrentei, ainda que a medo, o passo seguinte. A barriga tinha de se desfazer e eu refazer a minha vida com o seu interior. Decidi os nomes já deitada:Lourenço e Maria. Quando voltei ao mundo na cama da loja, tinha uma senhora de bata branca, muito maquilhada, como quem distribui amostras dos cremes La Prairie na companhia dos perfumes. Foi ela que me assistiu mas, demasiado ocupada para se dedicar inteiramente a mim, deixou-me com o Lourenço em cima da pele...O leite esguichava do peito, eu provei-o, queria esvaziar-me inteira...todo aquele volume era muito mais insuportável que a grande mudança de miúda para mãe. A Maria saiu sozinha, apressada. Ao contrário do Lourenço não tinha caracóis loiros nem falava...ficou a dormir ao pé de mim...a aquecer-me...O Lourenço pedia sopa, eu só tinha leite vindo de dentro. Alguém lhes pegou, vestiu-os...eu sentei-me...agora podia...livrar-me da barriga, devolveu-me a mobilidade. Sou mãe, não conto ao pai...ele não vaiquerer saber. Fico eu com eles, sem pensar se sou ou não capaz... pela primeira vez não me ponho em dúvida. Estou, é um facto.Experimentei ser mãe, ainda que em sonho...Acordo, com o medo que não tinha enquanto sonhava.
Respiro fundo, bebo água...
Volto a adormecer.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

desejo de quente

As pernas pedem calma. A cabeça pede pressa. Continuo apressada e desesperadamente à procura de calma para elas. Latejam, agora mais silenciosamente. Hoje faltou qualquer coisa. Peço desculpa mas desculpo-me primeiro. Não volto atrás. Parto daqui.
As pessoas falam demasiado, mexem demasiado, tocam-se, cumprimentam-se, falam do calor abrasador, fumam cigarros. Eu vejo-as. Vi-as hoje. Elas não sabem de tudo,mas sabem-me melhor qu ontem. Hoje faltou. Não foi a mais. Ainda bem!
Peço um copo de água como quem pede um olhar atento. Mas não quero. Se calhar quero só um bocadinho, se calhar. Tenho mais certeza que ontem mas ainda não a tenho inteira.
Gosto.
Gosto e calo-me.
Tenho medo por tudo o que quero e não consigo, nenhum medo pelo que hoje deixei, não quis conseguir.
A verdade é que não quis. Não querer deixou-me presa ao que deixei de querer, voltada para a irrealidade do mundo giratório em piloto-automático que defini como...possivel.
A menor das ambições refugiou-me numa cela muito escura com uma fogueira pintada a óleo gelado...tremi de frio para me aquecer.

domingo, 13 de abril de 2008

Partida

O sentimento de missão cumprida ainda é novo, muito novo. Prematuro. Chegar e continuar a andar mas com a sensação na boca do sabor agradável, nem mais nem menos intenso do que se quer. Não querer o café a seguir para continuar, prolongar a sensação de ainda se experimentar o ultimo passo do caminho certo nesse dia. A receita é quase tão efémera como o Teatro e o Teatro a única coisa impedida na receita. Sou eu. Só eu e os passos, os pés e o resto do corpo. Hoje segui a receita já sem ver o papel. Ainda me lembro bem de cada passo, o que fazer primeiro e depois. Quero esquecer-me e lembrar-me eternamente que este sabor existe e que eu o posso fazer. Quero ensiná-lo, dá-lo a provar, ser com ele, ser mais que ele. Consumi-lo inteiro, despedaçá-lo por dentro. Sentir que o tenho sem sentir que existe. Ser. Primeiro com medo...hoje o medo faz falta. Depois menos, muito menos de tudo por aprender a ser...qualquer coisa. Qualquer coisa, um alguém diferente, os lábios rasgados, devorados por dentro. Encarnados morango de Verão, mais quentes. Depois o vento, dançar com ele, nele, inteira. Ser qualquer coisa diferente, dar outro passo. Não chegar à meta. Avançar. Só. Ter muito medo, não temer quando o tenho. Agradecer-lhe. Agradecer-Lhe. Aprender a perder e a perder-me. Um bocado. Depois inteira. O sabor de ontem, melhor, apurado pelo passar dos instantes. Seguir. Conseguir.

sábado, 12 de abril de 2008

Rasgo

Qualquer coisa como uma prisão, pior que ela por não se ver...ou pelo menos não se ver com os olhos do resto do mundo. Vergonha de estar e de sentir. Mais que isso...vergonha de ter de fingir. Vontade de ter vontade. Desejo de prazer partilhado com a repulsa do material inquestionável da existência humana. Voltar a ter vontade e o ódio aumentado por não a saber servir nem saber antever o próximo lugar. O barulho acaba e o silêncio magoa mais que ontem. Hoje não sei viver com ele, hoje não lhe resisto aos espinhos violentos...e quanto mais os temo, mais se aguçam e se enterram em mim.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

1,2,3, uma colher de cada vez...

Não digo. Calo-te para sempre, prendo-te no demasiado tempo que se compreende na expressão aprendida há muito tempo, nos contos de fadas antes de adormecer. Prendo-te por dentro das calças, aperto o cinto e deixo cair por cima o casaco, preto, largo. Não demasiado...um pouco mais que o suficiente. Reaprendo o que nunca me ensinaram. Assumo todas as falhas que afinal não tinham o meu nome. Mais ou menos como o Édipo...hoje é mais a responsabilidade que a culpa que fala. Eu não sabia! Mas hoje sei...não escolhi, mas houve uma altura em que arrepiei caminho pelo sentido mais "fácil"...sem saber estava num labirinto romântico, demasiado enamorada dos objectivos que nunca questionei...não sabia que podia. Não sabia. Hoje sei. Questiono um de cada vez, chamo-os perto...as dúvidas são muito mais, avassaladoras, com gengivas de sangue e dentes bicudos. Fazem-me pequena, mas o medo ajuda-me a saber que existo perante elas. São as Minhas dúvidas. Para Eu resolver. Ou não. Um passo de cada vez. Não se muda o caminho errado de tantos anos num passo...primeiro encontra-se um atalho, muda-se a direcção e depois: novamente a caminho.
Hoje tive medo da escolha. Escolhi não ter de escolher nada. Amanhã há sol outra vez.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

1º direito

1º direito.
Toco duas vezes. Já sei que demora algum tempo. Os degraus de madeira velha e rija contornam o elevador que nunca usei. Chego á porta. Fechada. Carrego no botão fundo, com força para ressoar lá dentro. Olá. Olá, responde. Sento-me nas mesmas cadeiras dos ultimos quatro anos. Não vejo ninguém. Não preciso. Ali não preciso. O mundo é outro, diferente do mundo do lado de fora das janelas. Tenho medo de me aproximar da varanda. medo que o céu me veja e me caia em cima. Preciso deste quente mais um bocadinho. As cadeiras do mundo direito são rapidamente trocadas pelo puf encarnado, onde largo a auto-censura, deixo de me vigiar...deixo de pairar sobre os meus gestos e actos. Descanço. Deito-me dentro. Ela vem-me chamar, sorri. Sabe o meu nome. Sabe mais que isso. E eu não fujo. Não ali. Não dali. Não dela. Quero que ela não fuja. Que não me deixe fugir. Preciso daquele mundo à parte. De me sentir parte dele, pelo menos dele. Todos os dias penso no ultimo dia naquele 1º direito. A ambiguidade é imensa. quero deixa-lo mas ainda preciso muito dele...e quanto mais sinto que preciso maior é a vertigem de largá-lo.
Tenho medo de o largar sem querer. Ou que me larguem, que me atirem pela janela e me neguem aquele puf encarnado, onde ainda adormeço, deito-me e choro.

Sónia

Cala-te. Deixa-me.
Não tenho mais palavras para a Sónia, a personificação das noites sem dormir. Como hoje. Outra vez. Não vou beber café contigo, não vou molhar o pé à beira-mar, não vou ficar sentada de olhos espetados para fora a ouvir-te. Importas-te de sair?
Dormir. Desejo.
Quase o maior desejo que alguma vez tive. Dormir sem a Sónia ao lado, de pé, aolhar atentamente para mim. Daqueles olhares que queimam e que te dão a certeza, mesmo quando tens os olhos fechados, que está alguém a fitar-te.
ó Sónia Sónia. Se dissesses alguma coisa interessante até podia acreditar serem sonhos, dos bons... aqueles que são mais ideias que histórias e que servem para as histórias que se escrevem depois, quando se acorda.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Aquela senhora

Às vezes ponho-me a pensar como se fala. Sei falar, claro que sim.Claro? Sim, sei. Acho. Gostava de aprender a dizer palavras àquela senhora, palavras que digam menos que o que sinto, ela não entende bem. Ela não me quer entender. Bem, pelo menos. Às vezes não a conheço e fco presa à vontade de lhe conhecer o lado que existia antes de eu existir. Agora é tudo tão menos denso, tão menos grande, tão mais distante. Se as palavras saem da boca, da minha boca, ficam-lhe presas nos poros da pele, reviram-lhe o ânimo, revira-me as palavras da maneira que menos gosta e devolve-mas em forma de culpa por aquilo que eu não disse. Aquela senhora é mais menina que as outras, é mais frágil, como se auto-apagasse a força que mostrou ter e que hoje a transforma em memórias descoladas daquilo em que se transformou.
Dói-me quando aquela senhora se arranha com as palavras que não contenho. Dói-me quando as usa para me usar e me fazer de lixo. Seu. Quando me chama senhora forte e usa essa força para me enfraquecer na dependência peganhenta que me obriga a servir-lhe. E eu. Dou. De raiva engolida e transformada em mil tiros silênciado. Lançados um a um contra as paredes de dentro daquele lugar algures que sente. Ainda. Mas aquela senhora não reconhece, nunca o fez. Nunca quis porque afinal não é preciso. Hoje conheço-a melhor que ontem. Amanhã tenho medo que aquela senhora tenha menos importância e que o esforço cansativo e exagerado de sempre já não exista para aprender a falar-lhe. Um curso a tempo inteiro que deixa muito pouco espaço para o resto.

Bicicleta do E.T.

A sombra. Sempre sonhei com encontro intimo, o resultado de uma procura desesperada. Hoje já não corro atrás dela, também não a acompanho como há uns anos. Desisti. Investi de outra maneira, preocupada com outras maneiras de me ocupar da preocupação que me faltava ter de mim mesma, pelo menos do lado mais claro da lua. Mentiras...tudo o que os teus olhos viram...e hoje até...desconfias das verdades antigas que te confirmei mentiras para acreitares hoje em mim. Cais outra vez, no limbo que me separa o corpo do que tu pensavas que eu fosse. Ontem era diferente, hoje não te sei dizer.
Correr. O limite. Limite do corpo, encontrar o corpo, sentir o corpo até não poder mais com ele. Ouvir ao lado o fôlego suado do senhor que corre com muita muita pressa. Será que ele sabe que não vai chegar a tempo? Tempo. O tempo diferente, mutável, mudado de ontem para hoje, da estar bem para menos bem...o tempo que não chega e o que parece nunca passar.
Ginásio da língua. Falam e peço por dentro que se calem. 60 minutos contados de maneira igual, ou quase. Fim. Dever cumprido, nunca prometido a alguém.